INTRODUÇÃO
Iniciamos este trabalho com um assunto bastante polêmico e muito importante, ‘INSTITUIÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA’, nas últimas décadas, profundas mudanças de função, natureza, composição e, conseqüentemente, de concepção, sobretudo após o advento do Estado social.
O Estado legislador passou a se interessar de forma clara pelas relações de família, em suas variáveis manifestações sociais. Daí a progressiva tutela constitucional, ampliando o âmbito dos interesses protegidos, definindo modelos, nem sempre acompanhados pela rápida evolução social, a qual engendra novos valores e tendências que se concretizam a despeito da lei.
A família atual parte de princípios básicos, de conteúdo mutante segundo as vicissitudes históricas, culturais e políticas: a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a afetividade. Sem eles, é impossível compreendê-la.
A família patriarcal, que nossa legislação civil tomou como modelo, ao longo do século XX, entrou em crise, culminando com sua derrocada, no plano jurídico, pelos valores introduzidos na Constituição de 1988.
Como a crise é sempre perda de fundamentos, a família atual está matrizada em um fundamento que explica sua função atual: a afetividade. Assim enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida não hierarquizada.
Fundada em bases aparentemente tão frágeis, a família atual passou a ter a proteção do Estado, constituindo essa proteção um direito subjetivo público, oponível ao próprio Estado e à sociedade. A proteção do Estado à família é, hoje, princípio universalmente aceito e adotado nas Constituições da maioria dos países, independentemente do sistema político ou ideológico. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
INSTITUIÇÃO SOCIAL DA FAMÍLIA: Definimos a instituição como um padrão de controle ou uma programação de conduta individual imposta pela sociedade. Provavelmente, tal definição não desperta qualquer oposição no leitor visto que, embora difira da acepção comum do termo, não entra em choque direto com o mesmo. No sentido usual, o termo designa uma organização que abranja pessoas, como por exemplo, um hospital ou uma universidade. De outro lado, (o termo instituição) também é ligado às grandes entidades sociais que o povo enxerga quase como um ente metafísico a pairar sobre a vida do indivíduo, como “o Estado”, “o mercado” ou o “sistema educacional”. Se pedíssemos ao leitor que indicasse uma instituição, ele provavelmente recorreria a um desses exemplos. E não estaria errado. Acontece, porém, que a acepção comum do termo parte duma visão unilateral: estabelece ligação por demais estreita entre o termo e as instituições sociais reconhecidas e reguladas por lei. (Assim), torna-se importante demonstrar que, sob a perspectiva sociológica, o significado do termo não é exatamente este. Por isso, desejamos mostrar que a linguagem é uma instituição. Muito provavelmente a linguagem é a instituição fundamental da sociedade, além de ser a primeira instituição inserida na biografia do indivíduo. É fundamental, porque qualquer outra instituição, sejam quais forem suas características e finalidades, funda-se nos padrões de controle subjacentes da linguagem. Sejam quais forem as outras características do Estado, mercado e sistema educacional, eles dependem dum arcabouço lingüístico de classificações, conceitos e imperativos dirigidos à conduta individual: dependem do universo de significados construídos através da linguagem e que só por meio dela podem permanecer atuantes. Por outro lado, a linguagem é a primeira instituição com que se defronta o indivíduo. Esta afirmativa pode parecer surpreendente. Se perguntássemos ao leitor qual é a primeira instituição com que a criança entra em contacto, ele provavelmente dirá: a família. E de certa forma não deixa de ter razão. Para a grande maioria das crianças a socialização primária tem lugar no âmbito duma família específica, que por sua vez representa uma faceta peculiar da instituição mais ampla do parentesco na sociedade a que pertence. Não há dúvida de que a família é uma instituição muito importante. Acontece, porém, que a criança não toma conhecimento desse fato. Ela de fato experimenta seus pais, irmãos, irmãs e outros parentes que possam estar por perto naquela fase da vida. Só mais tarde percebe que esses indivíduos em particular, e os atos que praticam, constituem uma das facetas duma realidade social muito mais ampla: “a família”. É de supor que essa percepção ocorra no momento em que a criança começa a comparar-se com outras crianças. Já a linguagem muito cedo envolve a criança nos seus aspectos macrossociais. No estágio inicial da existência, a linguagem aponta as realidades mais extensas, que se situam além do microcosmo das experiências imediatas do indivíduo. É por meio da linguagem que a criança começa a tomar conhecimento dum vasto mundo situado “lá fora”, um mundo que lhe é transmitido pelos adultos que o cercam, mas vai muito além deles. A linguagem: a objetivação da realidade Antes de tudo, é o microcosmo da criança que encontra sua estruturação através da linguagem. Esta realiza a objetivação da realidade – o fluxo incessante de experiências consolida-se, adquire estabilidade numa série de objetos materiais distintos e identificáveis.
O mundo transforma-se num todo orgânico formado por árvores, mesas, telefones. Mas a organização não se restringe à atribuição de nomes; também abrange as relações significativas que se estabelecem entre objetos. A mesa pode ser levada para baixo da árvore, se quisermos subir nesta; pelo telefone chamamos o médico se alguém adoece. A linguagem ainda estrutura o ambiente humano da criança por meio da objetivação e por estabelecer relações significativas. Por intermédio dela a realidade passa a ser ocupada por seres distintos, que vão desde a mamãe (uma espécie de deusa reinante) até o menininho malvado que tem acessos de cólera no quarto contíguo. E é através da linguagem que se deixa claro que mamãe sabe tudo, e que menininhos malvados serão castigados; aliás, só através da linguagem tais proposições poderão continuar plausíveis. Além disso, é por meio da linguagem que os papéis desempenhados pelos diversos seres se estabilizam na experiência da criança. A criança aprende a reconhecer os papéis como padrões repetitivos na conduta de outras pessoas – trata-se da experiência que pode ser resumida na frase “lá vai ele de novo”. Essa percepção transforma-se numa feição permanente da mentalidade infantil e, portanto, da sua interação com outras pessoas, realizada por meio da linguagem. Esta especifica, numa forma capaz de ser repetida, exatamente o que a outra pessoa vai fazer de novo – “Lá vai ele de novo com esse jeito de pai castigador”, “lá vai ele de novo com essa cara de quem espera visita”, etc. Na verdade, é só por meio de fixações lingüísticas como estas (através das quais a ação alheia adquire um significado definido que será atribuído a cada ação do mesmo tipo), que a criança pode aprender a assumir o papel do outro. Em outras palavras, a linguagem estabelece a ligação entre o “lá vai ele de novo” e o “cuidado, que lá vou eu”. A linguagem: a interpretação e justificação da realidade O microcosmo da criança é estruturado em termos de papéis. Muitos desses papéis, porém, estendem-se ao campo mais amplo do macrocosmo ou, para usar a imagem inversa, constituem incursões do macrocosmo na situação imediata da criança. Os papéis representam instituições. No momento em que o pai assume aquele jeito de castigador, podemos presumir que essa ação será acompanhada de boa dose de verbosidade. Enquanto castiga, o pai fala. Parte de sua fala pode constituir apenas um meio de dar vazão à sua contrariedade ou raiva. Mas grande parte da conversa constitui um comentário ininterrupto sobre o ato incorreto e o castigo tão merecido. As palavras interpretam e justificam o castigo. E é inevitável que isso seja feito duma maneira que ultrapassa as reações imediatas do próprio pai. O castigo é enquadrado num amplo contexto ético-moral. As explanações sobre a moral e a ética ligam o pequeno drama que se desenvolve naquele microcosmo a todo um sistema de instituições macroscópicas. Naquele momento, o pai que aplica o castigo é o representante do sistema da moral e a das boas maneiras; quando a criança voltar a situar-se no mesmo, ou seja, no momento em que repetir o desempenho de um papel identificável, esse papel representará as instituições do sistema moral. Assim, ao defrontar-se com a linguagem, a criança vê nela uma realidade de abrangência universal. Quase todas as experiências que sente em termos reais estruturam-se sobre a base dessa realidade subjacente – são filtradas através dela, organizadas por ela, entram em expansão por meio dela ou, ao contrário, por ela são relegadas ao esquecimento – pois uma coisa sobre a qual não podemos falar deixa uma impressão muito tênue na memória. Isso acontece com toda e qualquer experiência, mas principalmente com as experiências ligadas ao próximo e ao mundo social.
FUNÇÃO ATUAL DA FAMÍLIA – EVOLUÇÃO Sempre se atribuiu à família, ao longo da história, funções variadas, de acordo com a evolução que sofreu, a saber, religiosa, política, econômica e procracional. Sua estrutura era patriarcal, legitimando o exercício dos poderes masculinos sobre a mulher - poder marital - e sobre os filhos - pátrio poder. As funções religiosas e política praticamente não deixaram traços na família atual, mantendo apenas interesse histórico, na medida em que a rígida estrutura hierárquica era substituída pela coordenação e comunhão de interesses e de vida.A família atual busca sua identificação na solidariedade, como um dos fundamentos da afetividade, após o individualismo triunfante dos dois últimos séculos, ainda que não retome o papel predominante que exerceu no mundo antigo. Na expressão de um conhecido autor do século XIX: "Pode-se expressar o contraste de uma maneira mais clara dizendo que a unidade da antiga sociedade era a família como a da sociedade moderna é o indivíduo". Por seu turno, a função econômica perdeu o sentido, pois a família – para o que era necessário o maior número de membros, principalmente filhos - não é mais unidade produtiva nem seguro contra a velhice, cuja atribuição foi transferida para a previdência social. Contribuiu para a perda dessa função as progressivas emancipações econômica, social e jurídica feminina e a drástica redução do número médio de filhos das entidades familiares. Ao final do Século XX, o censo do IBGE indicava a média de 3,5 membros por família, no Brasil. A função procracional, fortemente influenciada pela tradição religiosa, também foi desmentida pelo grande número de casais sem filhos, por livre escolha, ou em razão da primazia da vida profissional, ou em razão de infertilidade, ou pela nova união da mulher madura. O direito contempla essas uniões familiares, para as quais a procriação não é essencial. O favorecimento constitucional da adoção fortalece a natureza socioafetiva da família, para a qual a procriação não é imprescindível. Nessa direção encaminha-se a crescente aceitação da natureza familiar das uniões homossexuais. Milhares de sugestões populares e de entidades voltadas à problemática da família, recolhidas pela Assembléia Nacional Constituinte que promulgou a Constituição de 1988, voltaram-se muito mais para os aspectos pessoais do que para os patrimoniais das relações de família, refletindo as transformações por que passa. Das 5.517 sugestões recebidas, destacam-se os temas relativos a: fortalecimento da família como união de afetos, igualdade entre homem e mulher, guarda de filhos, proteção da privacidade da família, proteção estatal das famílias carentes, aborto, controle de natalidade, paternidade responsável, liberdade quanto ao controle de natalidade, integridade física e moral dos membros da família, vida comunitária, regime legal das uniões estáveis, igualdade dos filhos de qualquer origem, responsabilidade social e moral pelos menores abandonados, facilidade legal para adoção. A excessiva preocupação com os interesses patrimoniais que matizaram o direito de família tradicional não encontra eco na família atual, vincada por outros interesses de cunho pessoal ou humano, tipificados por um elemento aglutinador e nuclear distinto: a afetividade. Esse elemento nuclear define o suporte fático da família tutela pela Constituição, conduzindo ao fenômeno que denominamos repersonalização.
CONCLUSÃO
A realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Sua antiga função econômica, política, religiosa e procracional feneceram, desapareceram ou desempenham papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua.
A família, na sociedade de massas contemporânea, sofreu as vicissitudes da urbanização acelerada ao longo do século XX, como ocorreu no Brasil. Por outro lado, a emancipação feminina, principalmente econômica e profissional, modificou substancialmente o papel que era destinado à mulher no âmbito doméstico e remodelou a família. São esses os dois principais fatores do desaparecimento da família patriarcal.
Reinventando-se socialmente, reencontrou sua unidade na affectio, antiga função desvirtuada por outras destinações nela vertidas, ao longo de sua história. A afetividade, assim, desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da instituição social.
A repersonalização das relações jurídicas de família é um processo que avança, notável em todos os povos ocidentais, revalorizando a dignidade humana, e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes obscurecida pela primazia dos interesses patrimoniais, nomeadamente durante a hegemonia da individualismo liberal proprietário, que determinou o conteúdo das grandes codificações.
A criança, o adolescente, o idoso, o homem e a mulher são protagonistas dessa radical transformação ética, na plena realização do princípio estruturante da dignidade da pessoa humana, que a Constituição elevou a fundamento da organização social, política, jurídica e econômica.
BIBLIOGRAFIA
BERGER, P.L. e BERGER, B. “O que é uma instituição social”. Em Sociologia e Sociedade: leituras de introdução à sociologia (compilação de textos por) Marialice M. Foracchi (e) José de Souza Martins. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos, 1978, p. 193-5.
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